"Há um desfasamento sistemático entre o PSD e a social-democracia"
O PSD, que celebra esta terça-feira 40 anos de existência, utiliza "a etiqueta" da social-democracia, mas representa, desde a fundação, um conjunto de críticas liberalizantes ao Estado democrático fundado depois do 25 de Abril, defende José Neves, professor do Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
O especialista na história das ideias políticas, para quem não pode dissociar-se a crise da social-democracia à crise do movimento comunista, não tem dúvidas: Eduard Bernstein não se reveria nas políticas de Passos Coelho.
Ainda há social-democracia na Europa e em Portugal?
Há, enquanto tradição política. As tradições políticas não permanecem imóveis. Havendo quem se reclame de uma tradição social-democrata (um lugar que é mais fácil identificar por exclusão de partes: não é da esquerda crítica do sistema capitalista em geral, nem de uma direita que celebra entusiasticamente a existência de um sistema capitalista), podemos ver esse espaço como o espaço que sobre entra as duas correntes. O que aconteceu foi que boa parte do impulso reformista, de recurso às transformações sociais promovidas por políticas activas do Estado, foi sendo, senão abandonada, pelo menos tornando-se menos relevante na história dos partidos que se podiam reclamar da tradição social-democrata, os partidos do centro e centro-esquerda, no espaço europeu.
Tudo terá começado com Tony Blair…
O exemplo mais eloquente desse abandono terá sido o período de governação do New Labour, com Tony Blair, no contexto inglês. Mas a crise da social-democracia tem de ser pensada na relação com a crise do movimento comunista ou das ideologias comunistas. Há um momento – finais dos anos 80, início dos anos 90 – em que, aparentemente, os projectos políticos que se reclamavam de uma tradição crítica do capitalismo – seja essa crítica mais radical ou mais reformista – sofrem uma crise muito significativa, e a social-democracia que consegue sobreviver a essa crise é uma social-democracia que, em certa medida, para continuar a ser o que era é como se, em parte, deixasse de o ser. Por isso, temos uma aproximação entre uma tradição social-democrata e uma tradição liberal, uma aproximação entre o centro-esquerda e o centro-direita, que os torna progressivamente indiferentes.
E temos social-democracia com o PSD?
O facto de o PSD ter essa designação de “social-democrata” é, de algum modo, fruto de um contexto muito específico, que é o contexto revolucionário português de 74 e 75. Se olharmos para os outros contextos europeus, os partidos que se reclamam de uma tradição político-ideológica social-democrata são partidos que reconhecemos mais numa esfera de centro-esquerda e menos numa esfera próxima do centro-direita. No caso do PSD, a designação do partido remete para um pouco mais à esquerda do que o seu percurso. Há aqui um desencontro.
Num plano teórico, pelo menos, as origens do PSD não “bebem” da social-democracia?
Os autores que podemos identificar como os responsáveis pela criação de um corpo doutrinário e político de propostas de índole social-democrata estão mais próximos da esquerda portuguesa – do Partido Socialista e, até, de uma esquerda mais à esquerda do PS – do que o PSD, o que não quer dizer, como mostra a história do PSD, que no interior do partido não haja quem se reclame de uma ideia social-democrata. A tradição social-democrata enquanto corpo de ideias políticas esteve, de início, fortemente associada ao movimento operário ou a importantes componentes deste movimento, o que não é, de todo, o caso da fundação do PSD.
A prática não comprova a teoria.
Nos outros países, os herdeiros da tradição política social-democrata são os partidos do centro-esquerda e o PSD foi, desde o início, um partido do centro-direita no sistema político português. O PSD é o partido que melhor integra os sectores da Ala Liberal do antigo regime. Funda-se e apresenta-se, na cena política revolucionária de 74, como um partido situado no movimento social-democrata, utiliza essa etiqueta, mas é um partido que, desde o início, representa um conjunto de críticas liberalizantes ao Estado democrático que é fundado depois do 25 de Abril. Isto não retira significado aos debates internos no PSD, em que alguns sectores, frequentemente, se reclamam de uma tradição social-democrata, que seria, supostamente, a mais pura, para fazer a crítica de outros sectores do partido.
Quer isso dizer que Bernstein não se reveria nas políticas de Passos Coelho ou de Tony Blair ou de François Hollande.
Nas de Passos Coelho seguramente que não. Desde logo, pelo contexto português. Nós chamamos “Partido Social-Democrata” ao partido que, em Portugal, correspondeu, de forma mais efectiva, a uma proposta política de liberalização do funcionamento de economia. É um partido que está mais próximo daquilo que em Espanha, em França ou na Alemanha são os partidos que combateram a social-democracia. Seguramente que a herança “bernsteiniana” ou reformista que nos remete para a própria história da social-democracia não se faz sentir, de todo, no contexto actual do PSD e mesmo no contexto dos anos 90 ou 80, pese embora o facto de, no seu interior, existir um conjunto de discussões entre versões supostamente mais corrosivas da identidade do partido – que serão a dos sectores mais liberais - e as de outros sectores que se reclamam mais de uma ideia social-democrata, que têm um discurso que encontramos hoje, em parte, numa figura como José Pacheco Pereira. Também vimos esse discurso durante alguns períodos dos anos 90 associado àquilo a que se chamava o “cavaquismo”. De qualquer modo, mesmo aquilo que podemos identificar como traços do “cavaquismo” próximos da uma ideia de social-democracia não nos permitem esquecer que há um desfasamento sistemático entre o nome do PSD e a história da social-democracia enquanto ideia política mais global.
Mas o que é, afinal, a social-democracia?
Podemos falar da social-democracia como uma tradição política internacional, o que não impede que haja uma história nacional em cada caso, com as suas especificidades. A história da social-democracia é facilmente conotada com a história alemã e, concretamente, com a do movimento operário alemão, com um conjunto de debates que se desenvolvem naquilo a que se chamou a II Internacional, que vai dar origem a uma separação entre as correntes de pendor mais reformista (as da social-democracia) e outras que se vão reclamar da tradição comunista. Inicialmente, a social-democracia visa a reforma social e da economia, a transformação da sociedade num sentido progressista. É uma tradição que aponta para valores ou ideias – que hoje também podem ser vistos como chavões – como a igualdade ou a solidariedade, com forte ligação ao movimento operário. Uma separação de águas leva, por um lado, a uma corrente que entende que a transformação da sociedade deve tomar uma via mais reformista, que vem a ser a da social-democracia, e a outra via mais revolucionária. A partir da segunda metade do século XX, a tradição social-democrata ficará muito conotada, de uma forma que, porventura, suscita alguns equívocos, com um conjunto de transformações que leva àquilo a que normalmente chamamos um “estado de bem-estar”, no pós-II Guerra Mundial.
Não seria lógico pensar que a actual crise abrisse espaço a um ressurgimento das ideias social-democratas?
Nos últimos quatro, cinco anos, com a crise, alguma coisa poderia ter sido alterada a esse nível, mas mesmo quem tinha, de alguma forma, apontado nesse sentido não o fez. Olhe-se os recentes acontecimentos em França, onde François Hollande era visto como alguém que poderia promover um regresso a uma tradição mais reformista, que se contraporia às políticas mais liberais da Alemanha de Merkel. Agora, chega ao governo a ala mais à direita do PS francês, com Manuel Valls, o que vem confirmar aquilo a que vamos assistindo há 30 anos: uma crescente diluição da social-democracia e da tradição liberal à direita, numa espécie de uma mesma entidade político-ideológica, com partidos diferentes, mas que se identificam entre si mais do que alguma vez tinha acontecido na História.
E essa tendência para a diluição poderá alterar-se, um dia?
O problema é interessante. Nos últimos quatro, cinco anos, no contexto da crise económica e financeira que se vive, houve um momento de descrédito significativo das propostas políticas liberais e neoliberais e, nesse momento, houve uma certa recuperação e retoma de alguns tópicos e bandeiras que podemos associar a uma tradição social-democrata ou reformista, como a necessidade do combate às desigualdades, a necessidade de uma maior solidariedade e a necessidade de uma intervenção maior do Estado para esse combate e para se tornar numa alavanca do desenvolvimento económico.
Esse discurso teve uma oportunidade para fazer o seu caminho, o caminho que o levasse a ocupar o espaço de hegemonia liberal ou neoliberal que se foi construindo desde os anos 90. Contudo, esse espaço acabou, de alguma maneira, por não ser ocupado e, após uma primeira reacção de alguns Estados, que parecia apontar para uma resposta à crise que passaria por uma recuperação do Estado enquanto elemento de intervenção na sociedade, o que passamos a assistir foi a um crescimento das medidas de austeridade. Após um primeiro momento – que, no caso português ainda apanha o Governo Sócrates –, em que parece existir uma espécie de rebate de consciência nos partidos europeus de centro-esquerda, o que hoje vemos é um consenso relativamente instalado, uma aceitação das políticas de austeridade e dos princípios fundamentais através dos quais as políticas neoliberais se propõem resolver a crise.
É comum dizer-se que as ideologias podem passar por crises, mas não morrem, nunca acabam. A social-democracia pode ressurgir?
Parece-me muito difícil, no contexto europeu, pensar numa retoma de uma proposta reformista ou social-democrata, atendendo ao facto de estarmos a falar de espaços em que se perdeu a soberania política sobre as relações económicas. Seria possível verificar-se uma recuperação da tradição social-democrata, através de propostas que constituíssem uma espécie de europeísmo social-democrata? Talvez, a essa escala, talvez. À escala nacional, não, as dificuldades são muito significativas, embora possamos identificar em alguns sectores conotados com a esquerda mais radical – por exemplo, com o Partido Comunista Português – propostas que visam conferir ao Estado um conjunto de instrumentos de intervenção na sociedade que, de alguma forma, são fiéis a uma certa tradição social-democrata. Contudo, a adopção destas propostas implicaria uma desconexão entre o Estado português e o espaço europeu e, assim, a hipótese de uma reactivação de uma tradição reformista e social-democrata está, antes de tudo, dependente disto: ou falamos de um europeísmo social-democrata, que os partidos como o Partido Socialista e os seus partidos primos ou irmãos poderiam adoptar, e, aí, talvez, ou, então, falamos de uma social-democracia no sentido mais socialista do termo, que passa por propostas de teor mais patriótico, como algumas que podemos identificar no PCP.
Estamos a falar de Portugal e da Europa. Fora deste espaço, o quadro é diferente?
Podemos identificar, fora da Europa, que há uma “tradição social-democrata em curso”. Falo da América do Sul, da América Latina nos últimos dez anos. Se olharmos para o que passa em países como a Argentina e o Brasil; se olharmos, num sentido diferente, para o que se passa no Equador ou na Bolívia; e, num sentido ainda mais diferente, para o caso da Venezuela, vemos uma utilização do Estado enquanto instrumento de combate às desigualdades e enquanto promotor de um desenvolvimento económico nacional que faz alguma justiça a algumas das ideias da tradição social-democrata. Se estamos à procura de uma tradição social-democrata hoje, será mais fácil encontrá-la nas experiências políticas que se desenvolvem na América do Sul, com toda a sua complexidade, do que no espaço europeu.
RR