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É o FMI, não o Bloco de Esquerda, que escreve: "O ajustamento externo tem sido conseguido, em larga parte, devido à compressão das importações de bens que não sejam combustíveis e, ultimamente, ao crescimento das exportações de combustíveis". É o FMI, não o PS, que prossegue: "Esta dependência (...) arrisca enfraquecer os ganhos conseguidos até à data, assim que as importações recuperarem de níveis anormalmente baixos e as unidades de refinação eventualmente esgotem a sua capacidade 'extra', ao mesmo tempo que a melhoria na exportação de serviços é vulnerável a choques à procura de turismo."
Esta é a declaração mais impressionante da 10º avaliação do FMI ao programa de ajustamento, hoje publicado. Além dela, o Fundo diz que a competitividade das empresas não foi tão beneficiada pela descida dos salários como se supõe (os custos unitários do trabalho baixaram pouco) e permanece prejudicada por custos de contexto, logísticos (nos Portos) e de energia; o desemprego está alto e a rigidez salarial continua "extremamente elevada"; os bancos ainda têm prejuízos por assumir com créditos e imobiliário - e foram complacentes com as empresas falidas, cujas dívidas não foram reestruturadas.
É um anticlímax. Oportuno. O Governo vai surfar nos próximos meses os bons indicadores, chegará às eleições europeias com crescimento de PIB possivelmente acima dos 2% e pode dispor de uma triunfal "saída limpa". O facto de o FMI cortar rente os delírios políticos recoloca os problemas, que para quem lê jornais são pouco surpreendentes:
- O aumento das exportações é uma excelente notícia. Mas tem três vulnerabilidades: a dependência de produtos petrolíferos de um projeto específico da Galp; o facto de as receitas de turismo provenientes do exterior (que são contabilizadas como exportações de serviços) estarem a aumentar em quantidade, o que é fantástico, mas não em preço - André Jordan falava disso no sábado ao Expresso; e, sobretudo, o serem exportações sem investimento, pelo que resultam sobretudo de deslocação da capacidade instalada para os mercados externos, não de projetos novos ou inovadores. É por isso que não pode falar-se de um choque exportador. Sem investimento não há crescimento económico nem criação de emprego sustentável.
- A redução das importações não é perene. Quando houver investimento empresarial, haverá importação de maquinaria. Com o aumento do consumo, as importações aumentam, porque não somos competitivos na produção de muitos dos produtos que consumimos. Nem é preciso ir a um stand de automóveis. Basta ir a um supermercado e olhar para a nacionalidade do que está nas prateleiras. Made in fora daqui.
- A poupança está a ser estoirada em consumo. A taxa de poupança das famílias portuguesas aumentou muito nos últimos três anos. É uma atitude extraordinária, e explicável em grande parte com a redução dos créditos (o que também conta como poupança) e com a insegurança ante o futuro. Mesmo com o enorme benefício da redução abrupta das taxas Euribor (que evitou a falência de muitas mais famílias com crédito à habitação), houve uma perda de rendimentos muito grande nestes anos. Mesmo assim, os portugueses pouparam. E mais: depositaram nos bancos portugueses, evitando uma fuga de capitais, caso único em países intervencionados. A partir de meados do ano passado, o consumo privado voltou a subir, sustentando grande parte da retoma económica. Ou seja, os portugueses estoiraram parte do que haviam poupado. Isto significa que a poupança não serviu essencialmente para financiar investimentos (através de crédito bancário a empresas), mas para consumo. Olhando para os hotéis, para as vendas de "tablets" no Natal e de automóveis em Janeiro, percebe-se em quê.
- Há uma boa parte da nossa retoma que é cíclica. Isso não tem mal nenhum, mas ajuda a relativizar o "milagre". O próprio Vítor Gaspar sempre previu essa retoma cíclica, apenas se atrasou em um ano. Para isso, ajudou muito o quadro europeu e as melhorias na economia dos nossos parceiros comerciais. Merecemos toda essa sorte (e não merecíamos o azar de, nos primeiros anos da intervenção externa, termos tido a economia externa "contra" nós). Mesmo assim, não deixa de ser, em parte, sorte. Que não nos falte.
- Muitas reformas estruturais não foram feitas, começando pela anedota (já lá vamos) da reforma do Estado, que anda há mais de um ano de gaveta vazia em gaveta vazia. Perdeu-se oportunidade para reestruturar grande parte da nossa economia e a dívida pública está a um nível assustador.
No final do ano passado, o Banco de Portugal surpreendeu com um relatório crédulo e otimista: a economia portuguesa, escreveu o Banco, tinha mudado para sempre. As famílias portuguesas tinham-se tornado poupadas, as empresas tinham-se tornado exportadoras, éramos um País novo. Soou mais a vontade do que a diagnóstico. Ainda desejo que o Banco de Portugal esteja certo. Mas para isso o FMI tem de estar errado. Redondamente errado. Porque o relatório que publicou hoje é paralelepipedicamente o contrário dessa crença. E logo agora que isto estava tudo a correr tão bem.
PS - Finalmente, a anedota: o Governo português garantiu à troika que o guião da reforma do Estado de Paulo Portas vai transformar-se em propostas concretas em Março.
Pedro Guerreiro . Expresso