VIVER CONTRA A RÚSSIA
OU VIVER COM A RÚSSIA?
por Zé-António Pimenta de França
- Não foi a Ucrânia que atacou a Rússia, foi o contrário. Há que ter isto sempre presente de cada vez que falamos deste conflito. O agressor é aqui claramente a Rússia, que não haja qualquer tergiversação quanto a isto. Ponto assente!...
Ninguém escolhe os seus vizinhos. Uns têm sorte, outros têm azar com os vizinhos. Mas se num prédio não gostamos de um dos vizinhos, que nos inferniza a vida e está sempre a criar problemas, podemos sempre fazer as malas e mudar de casa, vendendo-a e comprando ou alugando uma nova. E esquecemos esse vizinho.
Os países não podem fazer isso, estão condenados a viver com os vizinhos que lhes tocaram. A Rússia é vizinha da Ucrânia e de mais uma série de países. Em sentido mais amplo, a Rússia é vizinha da UE. Tal como a Ucrânia, a Europa não pode fazer as malas, mudar de casa e esquecer a Rússia. Ela vai estar sempre ali, com a sua história imperial milenar que não se apaga em três ou quatro décadas. A Rússia também é Europa, faz parte da nossa casa comum.
A UE e a Ucrânia têm por isso que encontrar um 'modus vivendi' com o vizinho grande e poderoso que lhes calhou. Não há alternativa. A Ucrânia e a UE fariam bem melhor em tratar de encontrar e valorizar os interesses comuns que as unem à Rússia do que em persistir na sua permanente hostilização.
Mas não é isso que tem acontecido. Desde a queda da URSS que a UE e os EUA não fazem outra coisa senão menosprezar e mesmo humilhar a Rússia (que até já quis entrar para a NATO, sublinhe-se). O urso russo esteve adormecido, quase em estado comatoso, durante anos, desde a queda da URSS. Pois esteve. Mas já não está...
Agora temos que nos haver com uma Rússia que se fartou de ser humilhada.
Três casos de estudo:
O SUL DOS EUA, A ALEMANHA E O JAPÃO
Recordo três casos casos da História mais ou menos recente.
1. – Na Guerra Civil Americana o Norte venceu militarmente o Sul. Pois em vez de humilhar e castigar os sulistas, confiscando-lhes as propriedades e reduzindo-os à miséria (o que seria o normal nestes casos) o presidente Abraham Lincoln decidiu que os dirigentes políticos e militares e os soldados sulistas poderiam conservar os seus cargos, uniformes, os seus cavalos, espadas, armas de fogo e até as suas patentes, assim como as suas propriedades.
Não digo que tenha resolvido a divisão entre os americanos do Norte e do Sul. As divisões ainda existem, estão lá, latentes e ainda hoje se mostram bem à vista. Mas a atitude fraterna para com os vencidos criou nos EUA um espírito nacional que impulsionou a formação da nação mais poderosa do mundo, com todas as qualidades e defeitos que lhe conhecemos.
2. – Vejamos agora o caso da Alemanha depois da I Guerra Mundial. A Alemanha teve na I Guerra Mundial uma derrota mais político-económica do que militar. Militarmente o conflito saldou-se por um empate. Apesar disso, a Alemanha foi criminosamente humilhada nas negociações de Versalhes, uma humilhação sobretudo instigada pelo então presidente dos EUA Woodrow Wilson, personagem sinistro, tenebroso, sobre o qual não vem agora aqui ao caso elaborar mais. Isso gerou na Alemanha um enorme despeito e esteve na base do aparecimento de Hitler e do nazismo com o seu cortejo de horrores alimentado pelo ódio e a sede de vingança.
3. – Na II Guerra Mundial, a Alemanha teve uma estrondosa derrota militar e foi objecto de uma destruição sem paralelo. Apesar disso os vencedores (ocidentais) tiveram uma atitude completamente diversa. Ajudaram a Alemanha a levantar-se (até porque precisavam dela para fazer frente ao ex-aliado e novo inimigo que era a URSS) e a reconstruir-se. Os vencedores (ocidentais) da II Guerra Mundial têm hoje na Alemanha um aliado seguro…
O mesmo aconteceu com o Japão que, militarmente vencido, teve todo o apoio dos vencedores para se reerguer. Resultado: em ambos os países foram criados fortes estados democráticos que souberam reconstruir-se, tornando-se em grandes economias, novas médias potências tecnologicamente avançadas e financeiramente saudáveis.
– Voltando à actualidade e à Rússia. A URSS perdeu a Guerra Fria. Como a Alemanha na I Guerra Mundial, a Rússia não teve uma derrota militar. Foi uma derrota político-económica.
Pois ao contrario do que a experiência histórica aconselharia, a Rússia tem estado, tal como a Alemanha no pós I Guerra Mundial, a está a ser humilhada desde 1991. Tem sido enxotada humilhantemente de cada vez que tenta inserir-se na nova ordem mundial.
Para um povo imperial e orgulhoso como o russo, isto tem sido o melhor fermento para fazer desenvolver o nacionalismo que Putin tem sabido cavalgar e canalizar rumo ao seu objectivo: a reafirmação do seu país como grande potência. O cidadão russo médio aprecia isso e por isso se deixa levar...
A actual situação da Ucrânia é apenas o palco deslocalizado, como tem havido tantos outros de Angola ao Vietname ou à Síria (em África, na Ásia, América do Sul e Médio Oriente) do enfrentamento entre os EUA e a Rússia.
As lindas declarações sobre os Direitos Humanos e a Democracia conseguem encobrir, para muitos (mas não para todos), as motivações dos EUA no seu afã de atiçar o nacionalismo ucraniano no seu percurso suicidário contra o vizinho gigante russo. E com o apoio dos mil vezes tansos anões políticos que governam (ou fingem que governam, na realidade obedecem a forças que os transcendem) a UE...
Quanto mais dividida estiver a UE, melhor para os dois impérios que a comprimem...
E se a situação escalar e se chegar a uma conflagração militar aberta, o palco principal será sempre a Europa, cujos fracos e míopes dirigentes, muito mais preocupados com o seu umbigo (leia-se poder político pessoal nacional) do que com a casa comum europeia continuam a desgovernar com os olhos postos exclusivamente na próxima eleição nacional…
Um pouco de história
NA HISTÓRIA, RÚSSIA E UCRÂNIA CONFUNDEM-SE
A Rússia moderna obteve o seu nome do 'Rus' (Principado) de Kiev, que é de facto o antepassado histórico comum das actuais Rússia, Ucrânia e Bielorrússia.
Historicamente Kiev até já foi capital da Rússia, a primeira capital. O 'Rus' de Kiev, ou Principado de Kiev foi, no ano de 862, sob o comando do príncipe Rurik, o primeiro estado organizado a formar-se na região. Este 'Rus' de Kiev já era imenso e incluía a região ocupada hoje pela Ucrânia, a Bielorússia e a maior parte da Rússia Ocidental (incluindo Moscovo), com excepção apenas dos actuais estados bálticos que estavam ligados à Suécia…
O território do ‘Rus’ de Kiev foi unificado principalmente pela necessidade de se defender dos constantes ataques dos povos nómadas das estepes orientais (de para lá dos Urais) e pela adesão à Igreja Ortodoxa, a religião do Império Bizantino, que com a conversão do príncipe Vladimir (neto de Rurik), passa a ser a religião de estado, o que constituirá um dos factores fundamentais da unidade nacional russa. Nos quase três séculos seguintes, o Principado de Kiev desintegra-se em 15 principados divididos pelos descendentes do Príncipe Vladimir e acaba por ser integrado em 1276 no grande-principado de Moscovo.
O termo 'Rus' vem do antigo Nórdico e significa 'remador', 'aquele que rema'. Não há certezas sobre estes factos históricos, mas os historiadores crêem que 'os homens que remam' que deram origem ao nome da Rússia eram nem mais nem menos do que os Vikings provenientes da actual Suécia que se adentraram no território através dos rios e tornaram dominantes na região, espalhando-se até aos actuais territórios da Rússia, Bielorrússia e estendendo o seu domínio até à actual Ucrânia.
Os primeiros documentos que mencionam os 'Rus' vêm de meados do séc. IX, e provêm de Bizâncio, da Pérsia e de França. Descrevem inicialmente os Eslavos e os 'Rus' como grupos distintos ocupando o mesmo território, sendo os 'Rus' o grupo dominante. Os dois grupos acabaram por fundir-se após muitas décadas de coexistência, adoptando o nome do grupo dominante. A partir de então são todos Russos...
E como é que os 'Rus’ se tornaram na Rússia?
A designação moderna de Rússia (Rossiya) deriva do termo Grego para 'Rus’. Com o tempo e a progressiva divisão do território do 'Rus' de Kiev em 15 senhorios feudais governados pelos descendentes do príncipe Vladimir durante mais de três séculos, a região passou a chamar-se Russkaya Zemlya (a terra dos Russos).
Finalmente, quando os senhores do Grão-Ducado de Moscovo se uniram, os territórios do antigo Principado (Rus) de Kiev passaram, a partir do séc. XV, a usar como auto-designação, o termo Bizantino para 'Rus', Rossiya (que é a grafia do nome do país ainda hoje adoptada pelos Russos). Nasce assim o termo Rússia.
A história do nome da Rússia é, assim, tão turbulenta como a história da própria Rússia: envolve conquista, luta pelo poder, dissolução e reunificação. Mais do que isso, envolve um caldo de culturas, línguas (aparentadas, quase todas elas) e povos em permanente mistura e fusão. O nome da Rússia é um espelho em que o próprio país (em sentido lato) se revê...
Queremos viver com a Rússia, país fundamental da cultura europeia? Escuso de citar os nomes imensos da música, da literatura, do bailado, do teatro, do cinema de todo o universo da cultura mundial. Poderemos viver sem ela? Podermos dar-nos ao sacrifício de virar-lhe costas? Responda quem quiser e souber.
Hitler desapareceu e vivemos hoje muito bem com a Alemanha. Putin não é eterno, um dia também desaparecerá e a Rússia continuará aqui, na casa comum europeia…
A quem interessa dividir a Europa?...
Responda quem souber e quiser (eu tenho a minha opinião bem estruturada sobre isso, não a vou dar aqui neste texto, fica para outra oportunidade)…