Uma crítica justa ao jornalismo televisivo,
[designadamente, ao da TVI]
«Não matemos, com raiva nos dentes, a Judite. Expliquemos por que a reportagem é má e nada tem de jornalismo. Vejamos os princípios violados.
Primeiro princípio: O jornalista e o cadáver, na mesma imagem. Imaginemos que a reportagem era da imprensa (escrita). Que sentido faria, ao abrir a página de um jornal, ver o autor do texto numa foto ao lado do cadáver? Nenhum. Ou na rádio ouvirmos a repórter dizer “Estou aqui ao lado de um cadáver”? Nenhum. O problema da imagem da jornalista ao lado do cadáver não está, apenas, no morto. Mas na ideia de que ver a jornalista ao lado do cadáver acrescenta alguma coisa – falso, não acrescenta. É soberba pura. O jornalista, aprende-se no 10º ano, “não é notícia” nem se deve misturar com a notícia. A imagem do cadáver, apenas, pode ser defensável se tal demonstrar incúria das autoridades. Não foi isto que aconteceu.
Segundo princípio: É impossível determinar se a falecida teria ou não desejo de ser registada publicamente, em imagens, depois de morta. Todos os cidadãos têm direito à sua imagem, mesmo que falecidos. O registo da imagem de cadáveres por recolher faria sentido se o trabalho de recolha e identificação não estivesse a ser feito. Mas está, com esforço e devoção. Por isso, a imagem de um cadáver, avulsa, não é notícia nem se submete ao interesse público, porque o contexto tem sido explicado pelas autoridades.
Terceiro princípio: O texto da reportagem mostra, claramente, um descontrolo da repórter, quando diz que os bombeiros estão “ali à frente” e o cadáver continua no terreno, sem ser recolhido. De facto, miram-se ao longe uns pirilampos típicos dos bombeiros, mas pode ser um auto-tanque ou um carro de combate. Deseja a repórter que o cadáver seja atado a uma escada magirus? Mostra a peça a natureza da viatura? Sabe a reportagem que os bombeiros a metros são de uma ambulância ou do IML? Recorda ainda Ricardo Gonçalves, depois de leitura deste texto: “A área [estava] selada pelas autoridades, o que isso significa que: primeiro, já lá estiveram autoridades; segundo, os bombeiros não podem mover o cadáver visto que se aguarda a chegada do médico legista”.
Quarto principio: A ausência de contraditório. A reportagem não confronta nem os tais bombeiros da imagem nem as autoridades sobre a lentidão da recolha de cadáveres, proposta pela jornalista. Não foi falar com a Protecção Civil, com o IML, com ninguém. Não cumpre o que é básico no jornalismo – ouvir todas as partes.
Quinto princípio: “O jornalista obriga-se, antes de recolher declarações e imagens, a atender às condições de serenidade, liberdade e responsabilidade das pessoas envolvidas”, diz o código deontológico. Se a nora da senhora falecida está desesperada e lhe aparece uma estrela de tv a falar com ela, a nora pouca serenidade tem, no seu desespero, para decidir com serenidade, liberdade e responsabilidade se fala ou não, o que diz ou não. Está vulnerável, responde por impulso e, provavelmente, perdeu a casa, perdeu decerto familiares, não é testemunha a não ser de um desespero pessoal que, por causa do mau jornalismo, não se entende se ilustra uma falha das autoridades ou, apenas, uma peça sensacionalista. Isto é: não sabemos se o interesse público está presente.
Sexto princípio: A reacção da Direcção de Informação da TVI à abertura de inquérito defende-se com um falso argumento. Diz: ““A informação da TVI faz jornalismo. Apura factos, vai para o terreno, procura proximidade com os portugueses – e tem-no feito com sucesso, porque recolhe há anos consecutivos, mês após mês, a preferência da maioria dos cidadãos”. Ora, a “preferência da maioria dos cidadãos” não legitima o que quer que seja. A credibilidade da informação não está na maioria, mas no rigor. A TVI prossegue, dizendo que a maior audiência é “um indicador objectivo que valida a sintonia com a sociedade portuguesa que, sabe-se lá como e porquê, a ERC reivindica para si”. A direcção da informação não terá percebido que o mais forte nem sempre tem razão – nem que a ERC não é um órgão de comunicação social jornalístico, mas o regulador destes. Além disso, o director de informação acrescenta que a estação “não recebe lições de ninguém sobre sensibilidades profissionais”. Fica bem a qualquer director defender a sua equipa. Espero que o profissionalismo deste, indiscutível, lhe permita também dizer à repórter que o que fez não é jornalismo. Porque só assim terá razão quanto à sensibilidade.
Judite de Sousa é jornalista e tem carteira profissional. Todos fizemos já trabalhos maus, com falhas, com erros. Muitos tivemos trabalhos processados. Não devemos, por isso, pessoalizar. Há uma esfera da vida privada da jornalista que tem sido aproveitada, mal, para a atacar, nos últimos dias. Rejeitemos essa facilidade. Embora a repórter deva assumir a responsabilidade de um plano e um texto mal esgalhado, uma carreira de 40 anos não deve ser destruída por causa de uma peça – embora isso tenha acontecido a muito boa gente, de Peter Arnett a Brian Williams.
Judite de Sousa pode, e deve, porque o sabe, converter a sua energia em empatia e vir a público, se desejar, explicar o por quê do seu impulso – provavelmente com razões atendíveis: há muito que não ia para o terreno, sensibilidade pessoal que dominou a sensibilidade jornalística, contaminação do entorno perante o desespero das famílias e do cenário… Há muito que se poderá esperar e compreender, até. A arrogância, porém, não é desculpa, porque descredibiliza quer a jornalista quer o jornalismo. Nesta profissão, já tão desgastada, seria bom reconquistar o tal público com um gesto de humildade. Toda a gente falha.»
João Vasco Almeida,
in Extremos, Nacional,
Junho 20, 2017
1,047 Words
(na revista "Sábado", suponho)