Quando eu era criança e adolescente, tornava-se difícil arranjar mesa em qualquer dos inúmeros cafés locais, muitos dos quais paravam de atender pelas duas da manhã. As marisqueiras praticavam loucuras idênticas. Uma padaria em particular permitia que nos sentássemos no interior antes do sol nascer, ao lado de pescadores e prostitutas, a tentar engolir croissants a ferver. De Domingo a Domingo, após cada jantar e sem regresso marcado, o povo saía à rua para a maior das revoluções: caminhar, rir, discutir, conversar, enfim ser gente. Os meus avós, os meus pais, os avós e os pais de todos nós engrossavam a multidão. Essa época morreu.
Nos últimos vinte ou trinta anos, período em que Matosinhos deixou de ser uma vila simpática, industrial e linda por troca com um dormitório horrendo, com ênfase em “horrendo” e em “dormitório”, as coisas mudaram devagar e tragicamente. Agora, às nove da noite é o deserto, agravado pelo sujeito que leva o cão à relva ou que corre sem que o persigam. Os cafés encerram às sete, o comércio às sete ou sete e meia. Os restaurantes, aliás copiosos, vão até às nove ou dez, e não abusem. As próprias tendas de fast-food, que na América chegam a funcionar sem parar inclusive em povoados que jantam às 18.30, aqui murcham cedo e limitam-se a atender automóveis. A horas indecorosas, que continuo a testemunhar, o único sinal de que uma catástrofe nuclear não varreu a humanidade são os transviados que se encostam aos guichés das escassas bombas de gasolina “abertas”. O ideal é ninguém sair, que amanhã é dia de trabalho. Como convém num dormitório, os cidadãos dormem, nem que estejam acordados. Matosinhos é uma terra triste, e o pior é percebermos que não está isolada na sua tristeza.
Portugal é um país triste, atravessado pela mágoa de, durante um pedacinho breve, para aí entre 1978 e 1994, se a memória não me trai, não o ter sido. É legítimo culpar os shoppings, os sindicatos, a televisão, a Igreja, os telemóveis, os governos, os conselhos médicos alusivos ao sono, os arquitectos, os jogos de vídeo, o que se entender. É também inútil: os espanhóis possuem as mesmas maravilhas e, por enquanto, não abdicaram de viver. Nós abdicámos, e resignámo-nos a um protocolo da conformidade, interrompido por euforias de plástico para “partilhar” no Instagram. Os portugueses não partilham nada, excepto a vocação para a derrota.
Espero, dado ser o que me sobra, que Espanha resista ao avanço das sombras. Portugal, por exemplo e por desgraça, não resistiu.