Eu concordo com o que dizes. Apenas discordo que o sistema 100% liberal seja uma utopia porque o sistema liberal envolve regras e um estado mínimo (e naturalmente financiamento mas muitoooooo reduzido). O anarco capitalismo é que, IMO, é uma utopia pelas razões que apresentas (por vezes há confusão entre os dois sistemas - tende-se a ver o liberal como o selvagem sem regras).
Mas, já agora, o próprio sistema judicial e prisões não precisam de ser públicos. Podem ser privados sem que daí advenha grande mal. Já hoje existe justiça privada e funciona bem.
E se considerarmos a educação e saúde como algo imprescindível ao estado, até isso pode ser privado sem qualquer problema.
Eu já ficava contente se o nível de colectivismo fosse elevado, mas a liberdade fosse alta. O que chateia é viver num estado altamente colectivista e, como se isso não fosse suficientemente mau, ter um nível de liberdade muito baixo.
Estas questões de classificar as sociedades segundo "rótulos" rígidos é ao meu ver um exercício complicado e muito polémico. Tanto assim é que ainda há dias andávamos com a discussão sobre se uma sociedade social-democrata no fundo não é socialista; e como se formos rigorosos com as classificações, nunca existiu uma nação com uma sociedade verdadeiramente comunista (lembremos que obriga à não existência de classes, precisamente o oposto das sociedades ao estilo da RPC e da URSS).
Anarco-capitalismo, nem faço ideia do que seja
, mas pelo nome deve ser capitalismo num quadro de anarquia; o que ao meu ver é impossível. Mas é claro que como desconheço o termo posso estar a interpretar mal ...
Sendo assim eu acho que na prática há que analisar a sociedade e ver em que zona dum "espectro" ela se enquadra; sendo esse espectro algo que vai duma sociedade "super liberal" (vamos dar o valor zero, mesmo sabendo que será utópico) até uma sociedade "totalmente coletivista" (vamos dar o valor 100, também sabendo que será outra utopia).
Pegando naquilo que disseste acho difícil o estado não ter um papel fulcral na justiça. Assim sendo temos que ter um legislador, temos que ter polícias, temos que ter prisões. Mesmo que as prisões sejam privadas, o estado terá que contribuir com algo certo? Tudo isso exigirá impostos, que exigirão funcionários para catalogar rendimentos, propriedades, o fluxo do comércio, whatever (aquilo em que os impostos incidam). Tudo isso começa a fazer o espectro ir na direcção dos 100 e a afastar-se do zero.
Se houver escola (mesmo em regime de cheque ensino), tal mais uma vez puxa a escala no sentido que referi. E estamos sempre a falar dum estado muito contido.
Por isso é que digo que uma sociedade extremamente liberal será muito, mas mesmo muito difícil de acontecer na realidade (daí usar "utopia").
Atenção que a utopia liberal INCLUI leis, polícias, justiça, etc. Inclui tudo o que seja necessário para garantir que não existem vítimas inocentes. Leis contra poluição, leis de trânsito, etc, tudo isso.
Basicamente o mesmo que referi ao Automek.
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@ Inc e Automek:
Eu também gosto do conceito de uma sociedade liberal, a questão é que um conceito desses para avançar terá que responder a questões práticas e concretas e não apenas a questões vagas como costumamos referenciar (não gerar mal aos outros ou prejudicá-los, regras ambientais, etc).
Cada uma destas coisas que parecem muito simples e muito lineares iriam gerar micro-questões que cada delas iria fazer a organização social pender num sentido ou noutro do espectro que referi.
As leis ambientais são um bom exemplo; darão uma miríade de oportunidades para ir num ou noutro sentido.
Regras de trânsito: exigem polícias para fiscalizar, exigem coimas; quantos polícias vamos ter?; com que salários? ... ter 20 mil polícias ou 35 mil polícias exige um nível de impostos diferente, logo uma posição mais ou menos agressiva em termos de impostos.
Quantos alunos por turma? Quanto tempo de espera numa lista dos serviços de saúde? Quantos tribunais por 100 mil habitantes? Serviços de proteção civil ou não? Com que densidade? Que nível de conservação das estradas? Que nível de apoio para desempregados? Quanto tempo? Apoio para idosos? De que tipo, para que público alvo e valores?
Estão a ver ao que isto nos leva? Mesmo com um grau baixo de serviços estatais, há muita coisa a ser decidida, e cada uma destas coisas representa salários, representa despesa e representa necessidade de coletar impostos. Cada uma destas decisões vai levar a sociedade numa direcção ou outra do espectro.
E há outra questão: estas decisões, que são sempre arbitrárias, terão que ser tomadas ... seja por um monarca, por um parlamento ou por um referendo. E isso dará sempre brecha para decisões que não são do nosso agrado (por acharmos que são supérfluas, que não são éticas, etc.). Mesmo num enquadramento legal muito liberal, haverá sempre margem para discórdia e polêmica. O quadro legislativo e o tipo de gastos nunca agradarão a todos ao mesmo tempo.
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Para tentar dar um novo ângulo a discussão vamos aceitar a premissa do Jsebastião: fazer redistribuição de rendimentos é algo necessário, algo humano e por isso válido e aceitável (penso que o espírito é mais ou menos este).
Para tal vamos usar um sistema contributivo altamente progressivo e assim poderemos dar às camadas mais baixas serviços a que elas apenas com o seu rendimento não teriam acesso (um transplante, medicação cara, ensino universitário, etc.).
Vamos também poder dar apoios do tipo RSI, subsídios de desemprego, etc.
Esta espécie de "contrato social" XXL ao meu ver só tem validade se ele for respeitado.
O dinheiro que é retirado via impostos tem necessariamente que ser usado para esses fins e não para outros, sob pena desse arranjo ser totalmente questionável e sem ética. O dinheiro não pode ser gasto em salários inflacionados, em postos desnecessários, em burocracias sobrepostas,
e (principalmente) em desvios. Tudo isto é uma quebra desse contrato e deste momento para a frente é basicamente um esquema. As pessoas têm todo o direito de se sentirem defraudadas e reclamarem, a partir do momento em que o "intermediário" (ou "broker" o estado), começa a meter a pata na poça e a gastar dinheiro em coisas que não são o amenizar de situações humanas complicadas ou duras.
O problema é que mesmo vendo que estamos a operar num contrato que é muito duvidoso, não há forma de contestar esse contrato. E seguindo a ideia do INC, o problema é que com o passar do tempo os 6 amigos decidem roubar cada vez mais os outros 4.
Aqui é que está o cerne da questão. É que mesmo aceitando que é ético dar certos tipos de apoios, muitas sociedades ocidentais atingiram o ponto em que o que se passa é algo de bem diferente ... há uma parte que sim Sr é usada para esses fins "mais nobres",
mas há uma parte que é extorsão pura e dura. Assim sendo muitas sociedades devem "pensar" seriamente se não é altura de viajar novamente na direcção do zero do tal espectro. Muito da votação mais extrema que está a acontecer neste momento (IMHO) deve-se em boa parte à negação dos partidos de "centro" em fazerem essa viagem; uma manifestação clara de que ir sempre no sentido mais coletivista já está a chatear seriamente um franja importante da população.