Escrever um comentário com mais de dois parágrafos é arriscar que ninguém leia. Mas quem tiver interesse em tentar perceber o grupo Montepio, os motivos que levam às criticas recentes e os riscos das várias partes envolvidas, espero que este texto contribua para ajudar a esclarecer. Não se trata apenas de opinião. São fatos. E números. E a parte em que devem existir preocupação não é dos depositantes. É nos investidores em produtos mutualistas. Que são 650 mil portugueses.
A Associação Mutualista (AM) e a Caixa Económica (MG) são coisas separadas? São. E não são.
E esta é uma das principais questões que o grupo enfrenta. Porque se confunde um”
Depositantes”, com “
Associados”, com “
Investidores” e com um “
Acionistas”. A AM é dona da MG. A AM pertence aos
Associados, logo os
Associados são “
Acionistas” do MG. A AM investe o dinheiro dos
Investidores e dos
Associados. Os
Investidores são (in)diretamente
Acionistas do MG. Os
Depositantes nada têm a ver com a AM. São clientes do MG. Confuso? É natural. E nesta falta de transparência e de quem corre os riscos e é remunerado por eles que podem estar os problemas do grupo Montepio.
Teaser: A AM tinha 359 milhões de Euros de capital próprio em 2007. Teve resultados acumulados entre 2007 e 2014 de 408 milhões de Euros (numa base não consolidada!). Em termos consolidados só em 2013 perdeu 294 milhões e em 2014 o valor deve andar próximo de um prejuízo de 180 milhões (o prejuízo do MG). No mesmo período injetou 915 milhões de Euros no capital da Caixa Económica (e mais 200 milhões em breve). Onde arranjou o dinheiro?
Vamos por partes.
1) O banco: Caixa Económica Montepio Geral (MG).O negócio bancário em Portugal apresentou prejuízos avultados nos últimos anos. Como aconteceu um pouco por todo o mundo. E quem conhece negócio bancário ao longo dos anos sabe que passam anos com lucros e de repente em dois ou três anos perdem mais do que por vezes ganharam em décadas. A Caixa Económica Montepio Geral (MG) não foi exceção. Entre 2007 e 2012 teve lucros de 240 milhões de euros. Mas em 2013 e 2014 teve prejuízos de 485 milhões.
Mas isso não o torna único ou mesmo excecional. Aconteceu a muitos outros bancos. O que o torna único é sendo a sua principal exposição de crédito o mercado imobiliário, só em 2014 - quando muitos já falam em indicadores mais positivos neste mercado - é que registou imparidades em valor significativo nestes créditos. E a acreditar nas notícias, porque foi obrigado pelo Banco de Portugal. E só em 2014, porque nesse ano contou com ganhos de 352 milhões em Resultados de Operações Financeiras. Estes ganhos vieram da carteira de dívida pública. São extraordinários mas permitiram evitar o pior.
O mesmo aconteceu no primeiro trimestre de 2015: o banco teve lucros de 9 milhões de euros, mas os resultados das Operações Financeiras foram de 100 milhões? E para onde foi a diferença entre estes dois valores? Para tapar mais uns buracos.
Fonte: RC do MG
O banco precisa de aumentar a taxa da margem financeira e de reduzir custos. E se já contabilizou as imparidades a níveis mais razoáveis, então poderá voltar a dar lucros. O que 2014 provou é que é tempo de o banco Montepio deixar de estar com a cabeça enterrada na areia. Os outros bancos também perderam dinheiro. E entretanto racionalizaram a rede de balcões e cortaram custos e aumentaram capital. Note-se que desde 2007 a 2014 a margem financeira variou entre 225 e 336 milhões de Euros. Mas entretanto o capital e os ativos do banco subiram consideravelmente. Mas os riscos fazem parte do negócio bancário. E perder dinheiro porque alguns créditos entram em incumprimento também.
Que os resultados de operações financeiras – carteira de dívida pública – “salvou” Montepio, creio também não existirem dúvidas. E esta parte foi uma decisão da gestão e deve ser reconhecido o respectivo mérito.
Os desafios: aumentar capital, aumentar margem financeira, reduzir custos e diversificar o negócio. Já em relação à rentabilidade do capital é outra história. Para remunerar os 1,9 mil milhões de Euros de capital investido pelos acionistas a 5 ou 10% a.a. teria de apresentar resultados entre 95 e 190 milhões de euros ao ano. A avaliar pelos resultados dos últimos 8 anos, nunca esteve sequer próximo desses valores. É que os resultados das operações financeiras dos últimos anos dificilmente se repetirão.
2) A associação: Associação Mutualista (AM).Muitas pessoas se perguntarão: afinal o que faz a AM e porque isso é relevante para o banco?
A relevância resulta do fato de estarem confiadas à AM as poupanças de 650 mil pessoas e de a AM ser a “dona” do banco. E é na AM que se confundem os conceitos de Associados, Investidores e Acionistas.
Mas afinal qual é atividade da Associação Mutualista? A AM recebe as quotas dos Associados e as aplicações financeiras dos Investidores. Aos Associados oferece um conjunto de serviços e condições que se baseiam nos princípios de solidariedade e apoio social. Aos Investidores “promete” investir essas poupanças de forma conservadora e diversificada. Afinal tratam-se de planos complementares de reforma ou previdência. Segundo a Deco em muitos casos as poupanças nos produtos da AM representam 80-90% das poupanças das pessoas em causa.
Vamos centrar-nos apenas nesta segunda componente: gestão das poupanças dos Investidores.
Com o dinheiro que lhe é confiado faz investimentos em empresas do grupo (Caixa Económica, Seguradoras, etc), em títulos (ações, obrigações, fundos) e imobiliário. A rentabilidade desses produtos mutualistas é normalmente composta por um mínimo garantido e um rendimento complementar em função dos resultados, determinado pela gestão da AM. Até aqui nada a apontar. Investe quem quer e ponto final.
Então porque os reguladores (BdP, CMVM e ASF) solicitaram à 7 meses ao governo atenção para a atividade da AM? E porque é que uma atividade baseada em princípios sociais e de solidariedade merecer criticas?
Talvez porque não tem feito o esforço necessário para evitar confusão entre Associados, Investidores e Acionistas e tem gerido o dinheiro dos “Investidores” de forma que é tudo menos diversificada e conservadora.
Vejamos as implicações deste pormenor:
É certo que para ser Investidor em produtos mutualistas da AM é necessário ser Associado. Mas um Associado não precisa de ser Investidor. Pode ser Associado, pagar a suas quotas e beneficiar das condições oferecidas aos Associados. Quando opta por investir numa das mutualidades passa a ser um Investidor. E é nesta qualidade que deve ser tratado.
Os números da AM nos últimos anos (não consolidados. fonte: RC da AM):
Estes são os dados que habitualmente a gestão gosta de relevar. E olhados desta forma parece um caso de sucesso num período de crise financeira. Vejamos:
- O número de associados subiu 53% desde 2007.
- O ativo líquido (os capitais investidos pelos associados) sobe 109%.
- O capital próprio sobre 90%.
- Os resultados do exercício foram sempre positivos;
- O montante investido em capital (ações) do MG aumentou 156% desde 2006;Então porquê as criticas? Será mesmo um caso de sucesso?
a) Porque estas são as “contas individuais”. Ou seja, não refletem os resultados da Caixa Económica (exceto quando distribui resultados, o que aconteceu até 2012). A Caixa Económica é o principal ativo do grupo. E com estas contas a AM continua a dizer que ganha dinheiro. Mas as contas consolidadas que passaram a ser obrigatórias a partir de 2013 mostram uma realidade muito diferente. Porquê? Porque refletem os prejuízos da Caixa Económica (quase 500 milhões em dois anos).
b) Porque ao contrário do que era prática, os investimentos passaram a estar quase totalmente concentrados em risco da Caixa Económica. Antes da crise financeira, 80% da carteira de títulos da AM correspondia a dívida pública e obrigações estrangeiras. No final de 2014 era composta quase exclusivamente por obrigações da Caixa Económica. 90% do activo era risco do MG. Chamam a isto diversificar ou conservador?
c) Porque ao contrário do que a mesma gestão fez na Caixa Económica, em 2012, 2013 e 2014 a carteira de dívida pública na AM era negligenciável mas na Caixa Económica cresceu acentuadamente. Com os resultados conhecidos. Os investidores da AM teriam agradecido ganhos equivalentes.
d) Porque ao longo dos anos aumentou a exposição dos Investidores a “ações” do banco Montepio, chegando a atingir valores de quase 42% do valor dos ativos. Terá sido este o mandato que lhe foi dado pelas pessoas que investiram nos planos mutualistas? Colocar 42% do seu dinheiro em risco no capital de um só banco. Num ativo completamente ilíquido? Mesmo que seja o banco do grupo? Mesmo que a equipa de gestão tenha total confiança na evolução do banco? 42% de um plano complementar de reforma ou previdência investido numa só ação. Que por sinal tinha a atividade concentrada num segmento de Mercado que atravessava um período muito complicado? A pergunta pode ser teórica, mas e se o MG falisse nessa altura? Os investidores teriam perdido 42% do seu dinheiro.
e) Porque a maioria dos Investidores não deve saber que foi necessário aumentar o capital do banco Montepio de 585 milhões para 1,9 mil milhões (já incluindo o aumento anunciado em 2015) e que desse aumento, 1,1 mil milhões foram suportados por esses Investidores. E que o retorno desse investimento foi muito negativo até agora.
f) Porque a AM gere as poupanças de 650 mil pessoas, num valor próximo dos 5 mil milhões de euros, com “promessas” de gestão conservadora e na prática coloca 90% dos investimentos numa só instituição e não é sujeita a qualquer supervisão.
g) Porque o banco Montepio pagou à AM 3,7% pelos depósitos a prazo durante 2013 e 2014, quando a média total das taxas de depósitos era muito inferior. É certo que os melhores “clientes” devem beneficiar das melhores condições, mas até que ponto isto não foi apenas para “compensar” o facto de o montante investido em “ações” do Montepio continuar a aumentar e não ser expectável a distribuição de resultados do mesmo?
h) Porque é notório um esforço “comercial” na angariação de novos Associados e Investidores nos últimos anos. Em 170 anos conseguiu 400 mil associados e nos últimos 7 anos consegui 218 mil novos Associados / Investidores. Não deixa de ser interessante o ritmo de crescimento de novos associados/investidores entre 2009 e 2014: 10 mil, 21 mil, 34 mil, 36 mil, 45 mil e 51 mil em cada um dos anos. Numa altura em que as rentabilidades dos produtos mutualistas eram baixas e o risco a eles associado aumentava. Eu tenho dificuldade em perceber tamanho sucesso de subscrições face a performance tão fraca dos produtos.
i) Porque sem o aumento fantástico das subscrições dos produtos mutualistas a AM não teria 1,1 mil milhões de euros de capital para injetar no MG, como aconteceu. Esta necessidade de dinheiro justifica a “agressividade” comercial na angariação de novos Investidores. Será que todos os subscritores sabiam que estavam a tornar-se “acionistas” do MG? E se sim, que o estariam a fazer a um preço definido pela AM e não por eles?
j) Que rentabilidade pode um investidor esperar se 40% do seu dinheiro está investido num banco acumulou prejuízos avultados e que quaisquer resultados futuros terão de ser canalizados para reforçar o capital e não para distribuir como dividendos;
A instituição tem 170 anos e deve ser respeitada por isso. Mas os tempos mudam e as instituições também têm que mudar.
Em 2015 não faz sentido que uma instituição esteja a gerir investimentos financeiros de quase 5 mil milhões de euros pertencentes a 650 mil pessoas e não seja sujeita às mesmas condições de supervisão de qualquer outra instituição que gere poupanças de clientes particulares. A CMVM “obrigou” o grupo BES a “diversificar” os investimentos de um fundo de investimento que concentrava os seus ativos em empresas do GES. Não tenho dúvidas que faria o mesmo com os investimentos da AM. E se fosse a ASP a supervisionar certamente faria o mesmo. E o que aconteceria nessa altura? Nada de bom quer para a AM quer para o MG.
Nos últimos anos a AM concentrou-se em desenvolver a componente de “gestão de poupanças” por forma a ter disponibilidades necessárias para suportar a principal empresa do grupo – a Caixa Económica. E isto não tem nada de errado ou ilegal. Um acionista deve apoiar as suas empresas quando elas mais precisam, nomeadamente através de aumentos de capital.
Mas neste caso é admissível questionar: Se o banco pertence à AM e a AM pertence aos Associados, porque é que a AM está a utilizar o dinheiro dos Investidores para suportar o banco? Todos (ou a maioria) dos Associados e Investidores foram devidamente informados desse facto? Todos eles subscreveriam os produtos mutualistas se soubessem que uma parte importante desse capital seria investido em “ações” do Montepio durante o período de 2007 a 2014? Se as respostas a estas questões forem afirmativas, então todos estão informados dos riscos. Mas não é por isso que os riscos deixam de existir.
Alguém conhece um fundo de pensões ou uma gestora de plano complementar de reforma ou mesmo produtos financeiros vendidos pelas seguradoras que invista a quase totalidade do seu dinheiro numa só instituição? Além da AM, claro.