O quadro a que conduz a economia ultraliberal é bem claro. É como no futebol: entre os muitos jogadores de futebol profissional portugueses, há uns poucos que ganham muitíssimo (e jogam no estrangeiro), mais uns pouquinhos que ganham menos mal e a esmagadora maioria, talvez mais de 80 ou 90%, ganha miseravelmente. Contrariamente ao que se possa pensar, não há nada tão igualizador como o ultraliberalismo, que tende a gerar 1% de privilegiados e 99% de miseráveis.
Mas o futebol não são só os jogadores, há os presidentes e donos dos clubes, alguns são eleitos e é aqui que há uma enorme diferença: a sociedade da economia ultraliberal é uma sociedade de castas. Há a casta dominante e depois a maralha em competição. Esta maralha ganha o mínimo possível – mesmo o Cristiano Ronaldo ganha o mínimo que o Real Madrid teve de pagar para o ter. Qual é o mínimo que o patrão do leitor precisa de pagar para o contratar? Vá fazendo as contas... Se não pertence ao lote dos 1% melhores, ficará no lote dos restantes, e os restantes vão estar dispostos a trabalhar por uma sopa.
O que resulta desta economia ultraliberal é uma massa de escravos e miseráveis. Para estes economistas, como a Lagarde já o disse, não há razão nenhuma para um grego – ou um português – ganhar mais do que um nigeriano. E não há razão porque ambos pertencem ao “povo”, não pertencem ou estão ao serviço da casta dominante, como a Lagarde ou o António Borges ou o Constâncio.
O que tem travado este caminhar para a escravatura são as ideias do Estado Social e a força organizada dos trabalhadores que, entre outras coisas, impuseram ordenados mínimos. A classe média na Europa consegue ganhar actualmente uns 50 a 100% mais do que o ordenado mínimo. Se ganham o que ganham, é porque o ordenado mínimo é o que é.
Mas a economia ultraliberal não quer saber de ordenados mínimos e nem pensar em Estado Social. O objectivo não é uma sociedade melhor, é separar águas, isolar a casta dominante do povão.
É por isso que é preciso acabar com o “Estado Social”, cujo fim o director do BCE já declarou. Sonham com o fim do Estado Social. Sem o Estado Social, só os ricos terão acesso a educação de qualidade e a condições de vida que permitam garantir aos seus filhos um mínimo de condições de sucesso. Sem o Estado Social, a sociedade de castas fica definitivamente estabelecida. Voilà!
É por isso que os ricos e seus servidores não pagam impostos – nem a Lagarde paga impostos. Não pagam porque o Estado é para servir os interesses do povo, não deles, logo, o povo que o pague. A única coisa que os ricos precisam é de uma polícia para manter o povo controlado.
Não se pense, porém, que isto é uma novidade, algo que está a acontecer pela primeira vez. Nada disso, isto já vem do fundo dos tempos e do fundo da natureza humana. Foi por causa disto que se fizeram as guerras mundiais do século passado. Na altura, o argumento encontrado pelos economistas de serviço foi o de que não havia “espaço vital” para toda a gente, logo, as “raças superiores” tinham de dominar as outras por direito genético e exterminar os que não fossem domináveis, como ciganos, judeus e comunistas. As guerras mundiais nasceram do mesmo tipo de ideias “económicas” que dominam agora a Europa. Ideias ao serviço de um único objectivo: a defesa da casta superior. É por isso que o comunismo foi tão violentamente combatido e denegrido. Mas agora que o muro de Berlim caiu, que a ameaça para as castas superiores que o comunismo representava desapareceu, eis que essas castas ficaram livres para estabelecer a escravatura. De novo!
(note o leitor que eu não sou comunista; o modelo de sociedade que prefiro, dos que conheço, é o dinamarquês)
O nosso governo vai reduzir a saúde pública ao indispensável dos indispensáveis. Irá degradar o ensino público. Aumentará as cadeias e as polícias. E claro que vai baixar os ordenados. A garantia de que os ordenados vão baixar já foi “dada” por Passos Coelho – ele tem muito azar, sempre que garante uma coisa, acontece o contrário... O Estado deixará de ter quadros de médicos, enfermeiros, professores, etc – passa tudo a ser contratado a empresas de trabalho temporário. E baixando os ordenados do Estado, baixam todos.
Então a classe média queria ordenados europeus num país onde o ordenado mínimo é menos de 1/3 de outros países??? Se o ordenado mínimo é 500 euros, o das classes médias não deve passar dos 750 euros – por agora, porque a seguir este ordenado mínimo acabará e descerá até à sopa. Claro que os ordenados têm de descer!!! São as “leis do mercado”!
É que economia ultraliberal nivela por baixo. Quando cada um trata dos seus interesses, todos perdem para o mais forte. Óbvio.
Mas notem que em Portugal sempre foi assim; a única coisa que mudou para nós foi a escala – até ao 25 de Abril, ser licenciado em Portugal era pertencer ao 1% mais; hoje, ser português é pertencer aos 99% menos. A desigualdade sempre foi o nosso timbre, é por isso que temos 40% de abandono escolar – que significa que 40% das crianças têm condições de vida miseráveis. Contra isso, ninguém se indignou; mas indignaram-se com as medidas para melhorar essa situação. A escolha agora é bem clara: ou queremos a economia de mercado à escala europeia ou queremos um Estado Social; mas têm de decidir já porque quando forem escravos já não decidem nada. E isto vai piorar muito porque baixar os ordenados nada vai resolver, o desemprego vai crescer imparavelmente (calculo que é preciso menos de uns 20% da população para produzir tudo o que se consome actualmente, e quanto mais baixos os ordenados, menos se consome) e em breve estarão soluções de extermínio em cima da mesa (disfarçadas, é claro).
(um último pensamento: eu apostava que o Deutsche Bank, ou o Barclays, devem ter uns buraquitos do tamanho da dívida soberana portuguesa; o que irá acontecer quando isso vier a lume?)
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