Eucaliptocratas, diz eleHenrique Pereira dos Santos
26 Junho 2017É um absurdo pretender que se resolve um problema de ausência de gestão acabando com as poucas actividades suficientemente competitivas para pagar a gestão dos territórios marginais.
Escrevi um post no blog Corta-fitas com o título “Eucaliptocratas, diz ele”, e pediram-me que desenvolvesse a ideia. O título refere-se ao neologismo que Francisco Louçã criou para designar as “empresas do eucalipto”, numa crónica em que revela todo o seu desconhecimento, espero eu, sobre a gestão do fogo e a sua relação com o mundo rural.
Suponho que por “empresas do eucalipto” Louçã pretende designar as empresas de celulose, e não os 400 mil produtores de eucaliptos, empresas como a Unimadeiras ou a Abastena, que agrupam pequenos produtores, e muitos outros agentes económicos ligados à fileira do eucalipto.
Aparentemente, Louçã está convencido de que “a única medida estrutural que salva Portugal” é “a reflorestação com redução forçada das manchas de eucalipto e a reorganização da economia da floresta para sustentabilidade e protecção dos pequenos proprietários”.
Saltemos por cima da curiosidade que é ver Louçã alinhar com a política florestal de Salazar (uma forte intervenção do Estado, com clara primazia do pinheiro bravo que chegou ao milhão e duzentos mil hectares de ocupação do solo) e concentremo-nos no essencial.
Com os matos a representar mais de metade da área ardida em quase todos os anos, às vezes a ser muito mais que metade, em que medida reduzir as manchas de eucalipto contribui para a resolução do problema?
Pondo de lado os matos, considerando apenas os povoamentos florestais, os pinhais ardem mais que as áreas de eucalipto (os carvalhais também, mas não podem ser considerados ao mesmo nível porque a amostra é muito pequena), portanto não se entende muito bem em que medida a redução da área de eucalipto é “a única medida estrutural para salvar Portugal”.
O problema é muito mais fundo: Louçã não deverá saber, e eu também não sabia, que
“a madeira que arde num incêndio é aquela mais miúda e morta, com menos de 10 cm de diâmetro, e arde não na frente de chamas, mas após esta passar. Madeira mais grossa pode arder, especialmente se estiver apodrecida, mas arde principalmente sem chama… Por definição, a propagação de um incêndio florestal é alimentada pelo combustível fino com diâmetro inferior a 6 mm”, para citar Paulo Fernandes, que é uma das pessoas a quem recorro quando preciso de saber alguma coisa sobre este assunto.
Ou seja, e isso eu já sabia, mas Louçã aparentemente não sabe, o que conta mesmo é a folhada e os matos que estão por baixo das árvores, não são as árvores em si.
É verdade que um carvalhal maduro cria um forte ensombramento que limita o crescimento dos matos e, dessa forma, é um aliado na gestão do fogo, sobretudo os carvalhais de fundo de vale, que são os mais frequentes em Portugal mas, ainda assim, relativamente raros. Mas quer o mato, quer o eucaliptal, quer o pinhal, e mesmo os carvalhais jovens, têm essencialmente o mesmo tipo de vegetação junto ao solo, dependendo as variações mais das acções de gestão que são feitas que da espécie arbórea dominante.
O problema surge, pois, em toda a sua crueza: o que Portugal tem é um gravíssimo problema de falta de gestão que decorre do facto da maioria dos usos do território que hoje temos não serem suficientemente competitivos para pagar uma gestão de matos adequada à gestão do fogo.
Parece-me, por isso, ser completamente absurdo pretender que se resolve um problema de ausência de gestão retirando da equação as poucas actividades suficientemente competitivas para pagar a gestão dos territórios marginais.
Vale a pena voltarmos à fileira do eucalipto, não partindo do que cada um gosta – pessoalmente não gosto grande coisa de eucaliptos e muito menos de eucaliptais, que acho monótonos e, com frequência, inóspitos –, mas procurando avaliar se o seu contributo para a gestão do fogo é positivo, tendo em atenção que o problema está na gestão dos combustíveis e não nas árvores dominantes.
Nos cerca de oitocentos e cinquenta mil hectares de eucalipto (quase 10% do país, mesmo que diminuamos a área ocupado pelo eucalipto, não se entende como isso resolveria alguma coisa nos outros 90% do país), apenas cerca de 150 mil são geridos pelas celuloses, o restante é gerido pelos tais 400 mil proprietários.
Existem manchas intensamente geridas com base numa elevada capacidade técnica, os povoamentos dos eucaliptocratas, até explorações meramente extractivas em que o pequeno proprietário, racionalmente face ao elevado risco de incêndio, opta por não investir um tostão em gestão e fazendo um corte de eucaliptos entre dois fogos, já que a recorrência de fogo anda pelos 12 anos e o corte pode ser feito pelos 10 anos.
Os eucaliptocratas, porque fazem contas e não querem correr riscos, não só optam por uma intensidade de gestão que lhes permita gerir os matos, como criaram uma força específica de combate que, ao contrário da opção estatal, está permanentemente no terreno, ora combatendo no Verão, ora preparando o combate no Inverno.
É por isso possível ter testemunhos como o que transcrevo (adaptando para facilitar a compreensão por leigos), do tal post que usa o mesmo título deste artigo, vindo do director de produção florestal de uma das empresas de celulose.
“Se tirarmos os eucaliptos da paisagem portuguesa, também tiramos a única corporação profissional de bombeiros florestais do país da equação… 95% das intervenções de combate a incêndios da corporação Afocelca são fora do património das empresas de celulose. Já imaginaram as estatísticas dos incêndios em Portugal sem a Afocelca? Estive estes dias no incêndio de Góis. Os únicos bombeiros que eu vi combater os fogos na floresta foram os espanhóis, que estiveram connosco a combater. Os colegas portugueses estavam todos juntos às casas à espera do fogo lá chegar. É assim que está definida na estratégia da ANPC. Eu não discordo das prioridades estabelecidas, discordo da estratégia para as concretizar. Para defender as casas, é preciso combater o fogo na floresta, e não ficar à espera dele junto das aldeias.”
“O que travou o incêndio foram as plantações de eucalipto, porque quando o incêndio lá bateu em força vindo do Sul, rapidamente abrandou e foi controlado por nós. … Quando chegou à área devidamente gerida (por nós), o assunto ficou resolvido em poucas horas… Os meus colaboradores estiveram lá 36 horas seguidas a combater, a defender a sua casa, sem olhar para cansaço nem família.”
“Para nós, uma taxa de incêndio de 0,5% (isto é, arder meio hectare de eucalipto por cada 100 hectares existentes) é aceitável em termos de gestão empresarial. Acima disto, o dano por incêndio começa a constituir-se uma ameaça à sustentabilidade da nossa actividade empresarial…. Estou convencido de que se a floresta nossa vizinha fosse gerida como a nossa, ficávamos facilmente abaixo dos 0,1%.”
Este valor de 0,5% (este é o valor limite, o valor real anda pelos 0,3%) de taxa de incêndio pode ser comparado com taxas médias nacionais seguramente acima de 1%, demonstrando que os eucaliptocratas (mas não toda a fileira do eucalipto, porque nos restantes 700 mil hectares de eucalipto a taxa de incêndio é maior que nas propriedades geridas pelos eucaliptocratas) contribuem para diminuir a média nacional, aplicando um conjunto de boas práticas que há anos estão identificadas, que constavam da proposta técnica de defesa da floresta contra incêndios, mas que o Estado se recusa a adoptar, com os resultados conhecidos.
“Uma floresta comercial pode ter de comprar créditos de floresta de conservação. Quem planta 10 hectares de floresta de produção tem de ter ou financiar 1 hectare de floresta de conservação. Assim, o investimento florestal comercial impulsiona a conservação da floresta. Em vez de proibir, promove-se o equilíbrio.”
Só um grande desconhecimento do problema justifica a defesa de soluções que restringem a capacidade de gestão dos territórios marginais (é isso que está na raiz do problema que temos com o fogo) em vez de soluções que aproveitam a capacidade de gestão instalada para optimizar socialmente as soluções possíveis.
É que a alternativa ao desconhecimento seria admitir que Francisco Louçã está mais preocupado em evitar os lucros futuros das celuloses (“a Esquerda deve rejeitar qualquer caminho que conduza ao benefício dos eucaliptocratas”) do que em evitar vítimas futuras dos incêndios, uma hipótese moralmente aberrante que me recuso a acreditar que seja adoptada com plena consciência do que se está a dizer.
PS: Nada do que escrevi neste artigo corresponde à defesa, ou não, da fileira do eucalipto, da sua expansão ou restrição e etc., é apenas uma discussão que se pretende racional das implicações de diferentes opções de política. Pessoalmente, empenho os meus esforços em ter mais carvalhais e matas autóctones no meu país, mas eu não dependo economicamente da floresta.
*Henrique Pereira dos Santos é arquiteto paisagista. O ECO também o entrevistou a
propósito do incêndio em Pedrógão Grande.https://eco.pt/opiniao/eucaliptocratas-diz-ele/