In nihilo tempore, talvez tenha editado este texto de Luís Martins
a netianos de fóruns que nunca hajam com tal nihilismo simpatizado:
Confesso que não gosto de estorinhas,
nem talvez desta que aqui deixo,
se bem que tenha gostado:
«Eu ando a revisitar os lugares do meu passado.
Recrio o meu passado inventando-lhe a significação
que actualmente lhe confiro.
Há duas ideais de avenidas: a minha e a dos outros. ( )
Lá bebe-se café, come-se bolos, lê-se o jornal
e engatam-se miúdas.
( ) Entro, lá estão eles ao canto reforçando a evidência
das palavras transparentes que proferem. Lá está ela no centro deles:
a verdade eterna, o único sentido científico que a humanidade possui. ( )
Olho-os com indiferença. ( ) Obviamente que algo nos separa:
a compreensão e a extensão da ilusão, para falar em termos aristotélicos. ( )
Ao fim e ao cabo, vivemos no mesmo mundo e possuímos mundos diferentes.
Peço um café, mais para cumprir o ritual do que por necessidade.
Aproveito e peço um bolo qualquer. O empregado traz-me um «bom bocado»,
segundo me informou. A diferença entre um «bom bocado» e um «pastel de nata»
é mínima e quase imperceptível à primeira vista. Enquanto este tem o bordo
circular superior liso, aquele tem, a partir de um bordo circular imaginário,
o bordo constituído por uma dezena de arcos de circunferência.
Eu explico de forma simples
«pastel de nata»
«bom bocado»
![](https://1.bp.blogspot.com/-LsbAX3w6fEk/UZaH6YcCeFI/AAAAAAAABSY/5iGe5FcY8_g/s400/bom_bocado_httpdicasfemininas-su.blogspot.pt.jpg)
Constato que o pasteleiro criador tem, além da rotina da forma do bolo,
uma certa imaginação quanto aos bordos, de tal maneira que, a partir
de uma diferença mínima, construiu um novo modelo de bolo.
Além de que o nome é engraçado, infantil e sugestivo.
Perguntei ao empregado se vendia mais «bons bocados» que «pastéis de nata».
Um pouco admirado, respondeu-me que, de facto, se vendia mais dos segundos.
Exactamente como eu pensava: a partir de uma subtil introdução nova numa forma velha,
acompanhada de um nome atraente, as pessoas diversificam-se: os conservadores ( )
agarram-se aos «pastéis de nata», enquanto os progressistas ( ) são atraídos
pelos «bons bocados». ( )
Levanto-me e pago o café e o «bom bocado».
Volto as costas ao Ideal das Avenidas.
De facto, este café não me agrada,
não me dá prazer. É um prazer sair. ( )
Eu vou explicar tudo de uma forma muito simples.
A filosofia foi a porta de entrada dos meus delírios. ( )
Dela germinavam as minhas ânsias teóricas, as quais eu logo colava a uma ideologia. ( )
Hoje sou amante da filosofia e adverso das ideologias. ( )
Desracionalizando a filosofia como saber principal das ideologias,
restou-me o que é originariamente filosófico: um espaço de busca, de procura,
de movimento, de desassossego intelectual, um espanto do inesperado,
uma insaciável sede de ler e de saber para além das sabedorias
(filosofias mais ideologias) institucionalizadas:
a sabedoria do outro e do mesmo.»
O outro e o mesmo, de Luís Martins,
Contexto, Lisboa, 1981, pp. 157-65.